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A construção histórica da desigualdade esportiva
O futebol, considerado quase uma religião no Brasil, sempre foi moldado por aspectos socioculturais que privilegiaram o protagonismo masculino. O futebol feminino, por outro lado, enfrentou — e ainda enfrenta — um longo e tortuoso caminho em busca de reconhecimento, respeito e equidade. A questão central que nos propomos a explorar neste artigo é: por que o futebol feminino no Brasil ainda encontra tantos obstáculos estruturais, econômicos e simbólicos, mesmo em pleno século XXI?
Para entender o cenário atual, é necessário adentrar nas raízes históricas e institucionais que influenciaram diretamente o desenvolvimento — ou a falta dele — dessa modalidade praticada por mulheres.
A proibição institucional e suas cicatrizes
Durante o regime do Estado Novo, sob Getúlio Vargas, foi editado o Decreto-Lei nº 3.199 de 1941, que proibia expressamente a prática de esportes “incompatíveis com a natureza feminina”. O futebol, entre outras modalidades de contato físico, foi vedado às mulheres com base em argumentos pseudocientíficos e moralistas. Essa interdição perdurou oficialmente até 1979, gerando uma lacuna de quase quatro décadas de invisibilidade institucional, ausência de apoio governamental e marginalização midiática.
Mesmo após a revogação da proibição, os efeitos colaterais persistiram: ausência de investimento, falta de estrutura de base, carência de calendários competitivos e um imaginário coletivo moldado por preconceitos de gênero.
A invisibilidade na mídia e a construção do desinteresse artificial
Um dos pilares que sustentam o subdesenvolvimento do futebol feminino é a sua baixa exposição midiática. A cobertura esporádica e superficial — geralmente limitada a grandes eventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos — contribui para a falsa percepção de que “não há público interessado”.
Entretanto, pesquisas recentes refutam essa ideia. Segundo levantamento da FIFA, a final da Copa do Mundo Feminina de 2019 teve audiência global de mais de 1 bilhão de espectadores. No Brasil, os jogos da Seleção Feminina frequentemente superam, em audiência, partidas de clubes da Série A do masculino. O problema, portanto, não está na demanda, mas na ausência deliberada de oferta e promoção.
Estrutura de base: um solo árido para semear talentos
Outro fator crítico é a falta de estruturação das categorias de base. Enquanto meninos encontram escolinhas de futebol desde os cinco anos de idade, com programas integrados a clubes e escolas, as meninas enfrentam escassez de oportunidades, resistência social e preconceito velado.
Em grande parte dos municípios brasileiros, não existem equipes femininas registradas, nem competições regulares para formação técnica. A ausência de ligas juvenis, treinadores qualificados, equipamentos adequados e apoio financeiro reduz a capacidade de lapidar novos talentos e sustentar um ecossistema competitivo de longo prazo.
Comparativo entre futebol masculino e feminino no Brasil
Elemento | Futebol Masculino | Futebol Feminino |
---|---|---|
Categorias de base | Ampla, em todos os níveis | Quase inexistente em diversos estados |
Investimento da CBF | Bilhões por ano | Cerca de 10% do orçamento total |
Transmissão televisiva | Cobertura nacional massiva | Ocorrência pontual e esporádica |
Clubes com times profissionais | 100% das grandes equipes | Nem todos cumprem exigências da CBF |
Patrocínios | Grandes marcas, contratos milionários | Patrocínios esporádicos e pontuais |
O papel das instituições esportivas e dos clubes
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) vem implementando avanços pontuais, como a obrigatoriedade de que clubes que disputam a Série A masculina mantenham equipes femininas adultas e de base. No entanto, ainda há uma lacuna significativa entre o que é exigido e o que é de fato fiscalizado.
Alguns clubes como Corinthians, Ferroviária e São Paulo destacam-se por projetos consistentes no futebol feminino, com centros de treinamento exclusivos e equipes técnicas dedicadas. No entanto, essa não é a regra, e sim uma exceção em um oceano de descaso.
Barreiras culturais e o preconceito estrutural
A misoginia estrutural no futebol não se manifesta apenas na ausência de recursos. Está presente na forma como a modalidade é tratada por torcedores, dirigentes e até mesmo por parte da imprensa esportiva. Comentários desdenhosos, menosprezo pela capacidade técnica das atletas, resistência à equidade salarial e à valorização das competições femininas ainda são amplamente difundidos.
Além disso, meninas que expressam interesse por futebol ainda enfrentam o estigma de que “esporte não é coisa de mulher”, evidenciando o quanto os estereótipos de gênero ainda influenciam as escolhas individuais e coletivas dentro do universo esportivo.
Avanços recentes: luzes no fim do túnel
Apesar dos desafios, é necessário reconhecer os avanços obtidos na última década. A profissionalização de ligas como o Campeonato Brasileiro Feminino A1 e A2, o aumento de transmissões via plataformas de streaming e canais por assinatura, além da melhoria na gestão técnica da Seleção Brasileira são sinais de que há, sim, um movimento de mudança em curso.
Outro ponto a se destacar é o protagonismo de jogadoras como Marta, Formiga e Cristiane, que não apenas elevaram o nível do futebol feminino, mas também se tornaram vozes atuantes na luta por igualdade dentro e fora de campo.
O caminho para o futuro: o que precisa mudar?
A superação das dificuldades enfrentadas pelo futebol feminino no Brasil passa, inevitavelmente, por um conjunto de medidas articuladas e estratégicas:
Criação de centros de formação específicos para atletas mulheres, com investimento público e privado;
Aumento da cobertura midiática e compromisso das grandes emissoras com a divulgação contínua da modalidade;
Igualdade de premiações e salários em torneios nacionais e internacionais;
Campanhas de conscientização social para desconstruir estereótipos de gênero no esporte;
Incentivos fiscais e financeiros a clubes que investirem em futebol feminino de maneira estruturada.
Considerações finais
O futebol feminino no Brasil não sofre de falta de talento, mas sim de oportunidades. A existência de dificuldades estruturais não pode mais ser justificada por uma suposta “falta de interesse do público” ou “inferioridade técnica”. Os dados, as audiências e a entrega das atletas provam exatamente o contrário.
Para que o país que se orgulha de ser o berço do futebol possa realmente fazer jus a esse título, é imperativo que a modalidade feminina receba o mesmo respeito, investimento e visibilidade que o futebol masculino. O futuro do esporte brasileiro será, inevitavelmente, mais justo e plural à medida que reconhecermos o potencial que por tanto tempo foi negligenciado.